A idéia de que o nosso organismo busca o constante equilíbrio em toda sua extensão e organização estrutural e funcional remete a 1878, quando Claude Bernard definiu esse processo como Homeostase. A temperatura corporal é mantida próximo a 36°C, a pressão arterial média fica em torno de 100 mmHg e a pressão osmótica plasmática gira em torno de 300 mOsm. Flutuações nos fatores externos e ambientais raramente afetam esses parâmetros e diversos sistemas atuam em conjunto para manter esse equilíbrio. O sistema cardiovascular, por exemplo, garante que nutrientes obtidos pela alimentação (Sistema Digestório) e oxigênio obtido pela respiração (Sistema Respiratório) seja disponibilizado para as células.
Esses sistemas atuam em conjunto, e de forma organizada, através da ação do Sistema Nervoso, que recebe e envia sinalizações de acordo com o estímulo envolvido, e o sistema Endócrino, que garante que mensageiros químicos, chamados de hormônios, sejam secretados.
O principal mecanismo de manutenção da homeostase é o feedback negativo, que atua na redução de um determinado estímulo, garantindo que uma determinada variável permaneça no nível adequado para o nosso corpo.
OBS: Um exemplo de processo fisiológico que sofre ação de feedback negativo está nos usuários de esteroides anabolizantes. Quando o indivíduo começa a realizar as aplicações, os níveis de esteroide na corrente sanguínea se elevam rapidamente. Ao reconhecer níveis aumentados de hormônios androgênicos, o corpo para de produzir testosterona de maneira natural, ou seja, realiza o feedback negativo. Após determinado período, quando o usuário de anabolizantes cessar as aplicações, o corpo percebe a redução nos níveis sanguíneos e volta a produzir o hormônio de forma natural. No entanto, esse retorno é gradual e lento, podendo demorar meses para retornar aos níveis de normalidade, e é justamente nesse intervalo que diversos colaterais negativos relacionados a baixos níveis de testosterona surgem, como perda de força e massa muscular, disfunção erétil, labilidade emocional e diversas outras disfunções.
Esse problema relacionado ao uso de esteroides anabolizantes é inevitável e não há garantia nem forma segura de evitá-lo, tornando o seu uso perigoso por natureza, sem contar os colaterais que aparecem durante o uso, como acne, abscessos e trombose que também são nocivos e provocam riscos à saúde.
Durante a prática esportiva, o corpo humano passa por alterações morfofisiológicas de curto, médio e longo prazo. Essas modificações podem ser percebidas em diversos sistemas do nosso corpo. Por exemplo, se começarmos a realizar atividade física intensa, parte da energia desprendida pelos nossos músculos é convertida sob a forma de calor e a temperatura corporal tende a subir. Esse aumento da temperatura corporal faz com que o sistema nervoso desencadeie a liberação de suor, que esfria nosso corpo à medida que evapora. Ou seja, podemos definir esporte como o ato de submeter o nosso corpo a um constante processo de desregulação da homeostase, impactando em todos os sistemas biológicos, em um evento voluntário, coordenado, repetitivo e intenso.
O estudo dos fenômenos que ocorrem no corpo humano durante a prática esportiva é chamado de Fisiologia do Exercício. Por sua vez, a Medicina do Esporte é a especialidade médica responsável por estudar a relação desses fenômenos com a saúde, garantindo que esse processo ocorra sem causar lesões em órgãos e tecidos.
O marco inicial para o desenvolvimento de estudos que mudaram a maneira como o treinamento desportivo é estudado e aplicado e suas consequências no corpo humano se deu com o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1922.
Archibald Vivian Hill (1886-1977), fisiologista britânico é conhecido por ter iniciado os estudos no campo da fisiologia do exercício, considerado a principal autoridade do mundo no ramo da atividade muscular.
Anos antes da premiação, Hill viajou para a Alemanha, onde estudou o funcionamento de termopilhas, instrumentos capazes de medir mudanças muito pequenas na temperatura. Com a ajuda do físico Friedrich Paschen, aprendeu a utilizar galvanômetros de ímã em movimento. Com essas tecnologias, em 1920, Hill desenvolveu uma maneira de registrar o aumento da temperatura do músculo e examinou a taxa de produção de calor nas contrações musculares, traduzido em voltagem. Este artigo é de importância histórica, pois distinguiu as várias fases da produção de calor no músculo esquelético isolado durante a contração, relaxamento e recuperação.
Por causa do interesse de Hill no esporte, ele procurou aplicar os conceitos descobertos no músculo isolado ao ser humano em atividade física. Hill e seus colegas fizeram medições do consumo de oxigênio em si mesmos e em outros atletas, correndo em uma pista de grama de 85 m. Com esse trabalho, eles definiram os termos "consumo máximo de oxigênio", "necessidade de oxigênio" e "estado estacionário de exercício".
Em 1922 recebeu o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia por descobrir o processo de produção de lactato durante a atividade física. Até então acreditava-se que o aumento do ácido lático ocorria após a degradação do glicogênio.
Hill foi um dos primeiros a descrever claramente o conceito de consumo máximo de oxigênio e com a ajuda de Lupton, outro pesquisador, aprofundou o estudo sobre a importância do oxigênio e outras variáveis no desempenho atlético. Eles descreveram a noção de um limite superior para a capacidade do corpo de absorver oxigênio em seu artigo de 1923: “Exercício Muscular, Ácido Lático e Fornecimento e Utilização de Oxigênio.
OBS: O lactato é um importante marcador biológico, seus níveis aumentam em cenários onde a disponibilidade de oxigênio encontra-se reduzida, seja pelo aumento excessivo do consumo como pela redução da oferta. A dosagem de lactato sanguíneo é realizada inclusive durante o curso de patologias e processos lesivos como o choque hipovolêmico e sepse (infecção generalizada) para direcionamento de condutas e tratamento na internação hospitalar.
A aproximação de Hill com a fisiologia do exercício aplicada e estudos com atletas foi intrigante para outros membros da academia de ciências, uma prática até então desconhecida para a época. Em sua conferência na Universidade de Cornell, em 1927, Hill disse o seguinte:
"Por que investigar o atletismo, por que não estudar os processos da indústria ou da doença?" A resposta é dupla. Os processos de atletismo são simples, mensuráveis e realizados em um grau constante, ou seja, ao máximo dos poderes de um homem: os da indústria não são; e os próprios atletas, em estado de saúde e equilíbrio dinâmico, podem ser experimentados sem perigo e podem repetir suas performances exatamente de novo e de novo. Talvez eu indique uma terceira razão e diga, como disse na Filadélfia, que o estudo de atletas e atletismo é "divertido": certamente para nós e às vezes espero que eles. O que leva a uma quarta razão, talvez a mais importante de todas: que, sendo "divertida", pode ajudar a atrair entusiastas para o estudo da fisiologia, que precisa de todos eles.”
A visão e o entusiasmo de Hill atraiu muitos cientistas para o campo da fisiologia do exercício, e ele apontou o caminho para muitas das adaptações fisiológicas que ocorrem com o treinamento físico.
O impacto de Hill no cenário científico é visto até hoje e percebemos ele claramente no Futebol Americano. Devido ao grande número de variações morfofisiológicas entre os atletas, como as diferenças entre um Wide-Receiver e um Offensive Lineman, diversas possibilidades atraem pesquisadores e propostas surgem com o avanço da ciência no que se refere a saúde e performance. Empresas desenvolvem novas tecnologias e utilizam o esporte como uma maneira de testar novos equipamentos e depois levá-los para o público.
Percebendo isso, a NFL criou um evento para homenagear os profissionais dessa área e estimular esse cenário. A NFL: 1st and Future é uma premiação anual onde os melhores projetos de pesquisa na área do esporte e tecnologia são avaliados por diversas personalidades do futebol americano e ocorre na época do Super Bowl. As premiações são divididas em categorias, com destaque para Inovação, Saúde e Segurança, sendo esta a mais esperada e de maior visibilidade.
No início de 2019, ocorreu a penúltima premiação, onde os melhores projetos do ano de 2018 foram avaliados na cidade de Atlanta, no campus da Georgia Tech. A banca de avaliação era composta por personalidades como: Geoff Collins, Head Coach de Georgia Tech, Leigh Ann Curl, chefe da equipe de ortopedia do Baltimore Ravens e presidente da Sociedade de Médicos da NFL, Dan Quinn, Head Coach do Atlanta Falcons, e outros. Os finalistas da premiação na categoria Inovação, Segurança e Saúde foram: TopSpin, Solius, Nobo (já citadas aqui no Football Science) e a empresa TendoNova, responsável pelo desenvolvimento do sistema Ocelot.
Um exemplo para compreender a relação entre esporte, ciência e pesquisa corresponde justamente aos estudos relacionados ao sistema Ocelot. No evento, a TendoNova Corporation apresentou um dispositivo capaz de realizar procedimentos não-invasivos na área de ortopedia com estudos apresentando uma nova modalidade eficaz no tratamento de dor crônica. Hoje, após a apresentação na 1st and Future e com o sucesso da empresa, o Ocelot System está sendo estudado em Harvard no programa Football Players Health Study, com o título: Ocelot: Dispositivo de Consultório para Tratamento de Tendinopatia, desenvolvido pelo pesquisador Dr. Gerard Malanga.
Esse, e outros estudos, encontram-se em: https://footballplayershealth.harvard.edu/research/active-projects/
Lançado em 2014, o Football Players Health Study é um programa de pesquisa da Universidade de Harvard, dedicado a avaliar a saúde e qualidade de vida de ex-jogadores da NFL. É o maior estudo já realizado sobre ex-jogadores. Aproveitando a experiência do corpo docente e pesquisadores de Harvard em domínios interdisciplinares, incluindo neurologia, medicina esportiva, medicina de reabilitação e cardiologia,, o estudo é o primeiro a aprimorar o conhecimento sobre a interdependência das múltiplas condições que ex-jogadores enfrentam.
“Foi uma tremenda honra ser nomeado finalista entre tantas outras empresas de destaque e participar da competição da NFL '1st and Future'", "Suporte e orientação de organizações como a NFL e ATDC são essenciais para a nossa indústria e ajudam a tornar essas soluções inovadoras uma realidade. ” Roy Wallen, CEO - TendoNova.
Esse exemplo mostra a importância do investimento em ciência e saúde no cenário esportivo, servindo como uma via de mão-dupla como atrativo para empresas no setor de tecnologia, onde todos os envolvidos se beneficiam de novos projetos, idéias e inovação.
Texto e pesquisa de autoria de Thiago Dias, médico do Flamengo Imperadores.
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